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REFLEXOS DO DECRETO Nº 11.366/2023 NO ESTATUTO DO DESARMAMENTO

Mauro Messias1

TRÊS ASPECTOS PRÁTICOS QUE OS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO PRECISAM SABER SOBRE OS REFLEXOS DO DECRETO Nº 11.366/2023 NO ESTATUTO DO DESARMAMENTO.

No dia 2/1/2023, foi publicado o Decreto nº 11.366/2023. O ato normativo trouxe modificações relevantes para a legislação infralegal de armas, com reflexos nos crimes previstos no Estatuto do Desarmamento e na dinâmica processual subsequente. A seguir, três aspectos práticos serão brevemente analisados.

Com o novo decreto, o indiciamento em inquérito policial ou a decisão de recebimento da ação penal provocam a cassação das autorizações de posse e de porte de arma de fogo do indiciado ou processado (art. 27, caput, do Decreto nº 11.366/2023). Mesmo o indiciamento e o recebimento da ação penal sendo juízos provisórios do delegado e do juiz, respectivamente, a sua consequência é a cassação das autorizações de posse e de porte, e não a suspensão da posse e restrição do porte. Qual a diferença entre cassação e suspensão/restrição? A cassação é a perda do direito de possuir ou portar arma de fogo, logo, uma medida definitiva, ao passo que a suspensão da posse e a restrição do porte representam medidas temporárias. Por que um juízo provisório possui como consequência automática uma medida definitiva? Aqui, parece haver uma incongruência relevante, principalmente à luz do princípio da não culpabilidade.

A regra de tratamento do princípio da presunção de inocência impede que o Estado se comporte relativamente ao indiciado, acusado ou sentenciado como se condenado definitivamente fosse. Tal lição pode ser ainda mais dura no tocante ao indiciamento. O Supremo Tribunal Federal, no bojo da ADI 4911, reputou inconstitucional o art. 17-D da Lei de Lavagem de Capitais, segundo o qual, em caso de indiciamento de servidor público, este seria afastado, sem prejuízo de remuneração e demais direitos previstos em lei, até que o juiz competente autorizasse, em decisão fundamentada, o seu retorno.

O segundo aspecto prático a ser rapidamente observado é que, se o indiciado ou processado não entregar a arma de fogo ou não a transferir, no prazo de 30 dias da cientificação do indiciamento ou recebimento da ação penal (art. 27, § 1º, do Decreto nº 11.366/2023), haverá crime previsto no Estatuto do Desarmamento – por exemplo, posse irregular de arma de fogo (art. 12). Inclusive, por ser crime permanente, preenche-se automaticamente um dos requisitos para a prisão em flagrante, a saber, a ocorrência imediata de um crime (art. 302, I, do Código de Processo Penal). A realização dessa prisão por flagrante próprio pode ser facilitada pelo fato de a própria autorização de posse e de porte conter um endereço formalmente declarado pelo titular da autorização. Com isso, uma leitura açodada poderia levar à conclusão de que um sem-número de prisões em flagrante mediante entrada forçada em domicílio facilmente poderia vir a ocorrer a partir do 31º dia de violação ao art. 27, § 1º, do Decreto nº 11.366/2023.

Acontece que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça mudou faz anos e não mais considera apenas o estado de flagrância como apto a referendar toda e qualquer entrada forçada em domicílio. É preciso demonstrar, por exemplo, que a representação policial, isto é, a busca por um mandado judicial, causaria prejuízo importante e delonga insuportável ao mister da Polícia Judiciária. Como demonstrar que, passado tanto tempo (os 30 dias do art. 27, § 1º), ainda restaria alguma urgência a justificar a prisão em flagrante mediante entrada forçada em domicílio? Quer dizer, a própria elasticidade do prazo de 30 dias previsto no art. 27, § 1º, retira o caráter emergencial responsável por afastar a necessidade de busca por um mandado. E nem se diga que o prazo de 30 dias tornou os delitos previstos no Estatuto do Desarmamento crimes a prazo. Por exemplo, o delito de apropriação de coisa achada (art. 169, parágrafo único, II, do Código Penal) é um crime a prazo, pois toda e qualquer apropriação de coisa achada apenas se consuma após 15 dias de apropriação. Isso não é verdade em relação aos crimes do Estatuto do Desarmamento. A nosso ver, a hipótese do novel art. 27, § 1º, cria uma curiosa modalidade de crime acidentalmente a prazo. Portanto, nesses casos, não se vê justificativa automática para a prisão em flagrante mediante entrada forçada em domicílio.

Por fim, imagine-se os incontáveis indiciamentos e decisões de recebimento da ação penal proferidos antes do advento do Decreto nº 11.366/2023. Questiona-se: tais atos anteriores podem ser considerados para a consumação dos crimes previstos no Estatuto do Desarmamento posteriormente ao novo decreto? Ou seja, estaria o decreto retroagindo em desfavor da pessoa imputada?

A questão é interessante. Obviamente, o decreto não criou ou modificou as elementares dos crimes do Estatuto do Desarmamento. Sequer poderia fazê-lo. Em verdade, a nível infralegal, regulamentou hipótese a marcar o momento a partir do qual a posse ou porte podem ser considerados irregulares ou ilegais, o que é natural pelo fato de muitos delitos do Estatuto do

Desarmamento configurarem normas penais em branco. Desde que esse marco temporal não retroaja, não há violação ao princípio da irretroatividade da lei penal. A título exemplificativo, decisão de recebimento da ação penal proferida em março de 2021 não pode ensejar a consumação retroativa de crime em abril de 2021. Portanto, a nosso ver, os indiciamentos e decisões de recebimento da ação penal proferidos antes do Decreto nº 11.366/2023 podem servir para a consumação dos crimes do Estatuto do Desarmamento posteriormente ao novo decreto, desde que o prazo de 30 dias, previsto no art. 27, § 1º, seja contado a partir da publicação do novel decreto. Para tais casos, referido prazo findaria em 1/2/2023, logo, o 31º dia de violação (e a consumação do crime) ocorreria no dia 2/2/2023.

Portanto, os três aspectos práticos que os membros do Ministério Público precisam saber sobre os reflexos do Decreto nº 11.366/2023 no Estatuto do Desarmamento são: (1) viola a Constituição Federal a cassação das autorizações de posse e de porte em razão de indiciamento ou decisão de recebimento da ação penal; (2) o advento do 31º dia de violação ao art. 27, § 1º, do novo decreto não autoriza automaticamente a prisão em flagrante mediante entrada forçada em domicílio; e (3) os indiciamentos e decisões de recebimento proferidos antes do advento do Decreto nº 11.366/2023 podem ensejar a consumação dos crimes do Estatuto do Desarmamento após o novo decreto, desde que o prazo de 30 dias, previsto no art. 27, § 1º, seja contado a partir da publicação do novel decreto.

  1. Master of Laws (Universidade da Califórnia em Los Angeles, Estados Unidos), com período de trabalho no Ministério Público da Califórnia em Los Angeles. Autor de livros (Editoras Lumen Juris, D’Plácido e Mizuno). Professor de Direito Processual Penal (RSC Online/JusPodivm). Promotor de Justiça (Ministério Público do Estado do Pará). Criador e programador do “Sistema de Inteligência Artificial AppCrim”, premiado em 1º lugar pelo CNMP, em 2021. Redator pela CONAMP da petição inicial e de pedido liminar nas ADIs 6919/DF e 6305/DF, respectivamente. Assessor Especial da Presidência da AMPEP. Integrante do Grupo de Trabalho “Governança de Dados e Transformação Digital no Ministério Público”, no âmbito da Comissão de Planejamento Estratégico do CNMP.